07-07-2022 Os atuais desafios do Transporte Marítimo
Os atuais desafios do Transporte Marítimo
Por Jaime H. Vieira dos Santos
O Tema que a Direção da AGEPOR propôs para o seu 1.º Get Together, apesar de vasto e, portanto, suscetível de múltiplas abordagens, é desafiante na medida em que é de uma enorme atualidade, e, além disso, sendo o mote do primeiro debate de uma série que ocorrerá ao longo dos próximos meses, não tem maneira de fugir ao seu destino de marcar o sentido para as reflexões seguintes, ainda que todas elas lhe sejam autónomas e livres nas suas propostas e nos seus conteúdos.
Assim, neste 1.º Get Together, com o objetivo de organizar as ideias, tornando claras as mensagens, era fundamental reduzir a amplitude do Tema, focando-o num universo coerente de conceitos cujo conteúdo se pudesse disseminar pelas várias perspetivas através das quais o Transporte Marítimo pode ser abordado.
Seguindo este percurso, o perfil dos produtos transportados foi o recurso para tentar perceber o futuro do transporte marítimo e os consequentes desafios com que se debate já hoje.
Sabemos que se transportam os bens que se produzem e consomem nas Sociedades, burilados, todavia, pela expressão cultural dos Grupos que as compõem, e, nestas circunstâncias, ao longo do século XX, construiu-se uma Cadeia Logística que, nos vários comprimentos dos seus canais, colocou à disposição, dos Cidadãos, produtos variados de diversas origens e fê-lo em tempo muito rápido.
No entanto, foram (e ainda são) produtos que, no fim do uso, tinham como destino final o caixote do lixo, numa dinâmica industrial de sentido único, a chamada Economia Linear, “da extração à distribuição”, e, em cujo desenvolvimento, o Transporte Marítimo teve um papel de relevo.
O carvão, o petróleo e mesmo o nuclear (fissão) foram (e são ainda) as energias que suportaram este processo industrial complexo, que forjou Redes de Transporte Marítimo Planetárias, cuja expressão mais sublime está nas Alianças de Armadores no transporte de contentores, e a sua expressão mais robusta na especificidade estratégica dos produtos transportados na malha do transporte de hidrocarbonetos naturais, os energéticos (petróleo, gás natural, carvão).
Porém e como consequência desta dinâmica, despontou-se um problema grave, senão, mesmo trágico: o Planeta e a nossa Vida ficaram ambos em risco, não suportando mais o paradigma intensivo de extração dos recursos para alimentar uma Estratégia Industrial de Fabrico, igualmente intensiva e sem outra preocupação que não fosse a competitividade financeira dos produtos.
Nasceu assim um problema sério de sustentabilidade da Terra que, normalmente, arrumamos na palavra AMBIENTE, à volta da qual vimos teorizando muito na busca da solução mas com resultados insuficientes na execução, como nos mostra logo a primeira conclusão do COP 26, a cimeira de Glasgow, em Novembro passado, sobre o Clima e que se transcreve:
Um dos objetivos da COP26 era manter e reafirmar a necessidade de limitar o aumento da temperatura média global a 1,5ºC, porém as promessas dos países continuam a ser insuficientes.
Não obstante, o texto final aprovado na COP 26 mantém como ambição conter o aumento da temperatura da terra em 1,5 graus celsius e regular o mercado de carbono.
Este é o limite para além do qual o aquecimento da atmosfera põe em risco os ecossistemas que suportam os padrões de vida conhecidos.
Isto é um sinal evidente de que as coisas do clima estão mal!
Temos de construir um Novo Paradigma de Vida para estancar a tragédia e garantir a nossa sobrevivência. O tempo corre a nosso desfavor!
Com estas preocupações, a União Europeia lançou o Pacto Ecológico Europeu (PEE) e no seu “site” afirma a sua ambição de ser o primeiro continente com impacto neutro no clima. Transcreve-se o texto na parte que interessa:
· A Comissão Europeia adotou um conjunto de propostas legislativas com o objetivo de tornar as políticas da UE em matéria de clima, energia, transportes e fiscalidade aptas para alcançar uma redução das emissões líquidas de gases com efeito de estufa de, pelo menos, 55 % até 2030, em comparação com os níveis de 1990. ... e ... as emissões líquidas de gases com efeito de estufa sejam nulas em 2050.
O Pacto Ecológico Europeu (PEE) fixou uma Nova Estratégia Industrial para uma Europa competitiva, ecológica e digital onde a economia circular constitui um pilar essencial, levando, por sua vez, a Comissão Europeia a comunicar às diversas Instituições Europeias
Um Novo Plano de Ação para a Economia Circular
apostando em produtos de alta qualidade, funcionais e seguros, eficientes e acessíveis, que durem mais tempo e sejam concebidos para a reutilização, a reparação e a reciclagem de alta qualidade, lê-se na introdução.
O Plano de Ação (PA) foca-se nas principais cadeias de valor de 7 gamas de produtos --- Eletrónica e TIC, Baterias e Veículos, Embalagens, Plásticos, Têxteis, Construção e Edifícios, Alimentos, Água e Nutrientes --- impondo a reciclagem e, logicamente, obrigando as Sociedades à necessidade da Reorganização das suas Cadeias de Produção e, concomitantemente, à constituição de um Novo Cabaz de Oferta e, bem assim, ao despertar para um Novo Paradigma de Vida com consequências inevitáveis no Transporte Marítimo, que terá de se redesenhar.
Este será, porventura, o maior desafio do Transporte Marítimo, ir ao encontro dos Novos Produtos que sustentam o Novo Paradigma de Vida, propondo novas Redes de Serviço, quiçá, Novas Alianças (chamo à atenção para o artigo de opinião recente de Fernando Grilo, no T&N).
O PA estabelece nos seus objetivos a utilização de produtos de vida mais longa, a sua recuperação e reciclagem no fim da serventia, tendo consequências para os Transportes,
que a própria UE já prevê:
· Até 2030, estarão em circulação 80 000 camiões totalmente elétricos na União e haverá um aumento em 25% no Transporte Marítimo de Curta Distância.
· Até 2050, haverá o dobro do tráfego ferroviário de mercadorias que hoje existe na UE e será criada uma taxação sobre a pegada do carbono.
· Até 2035, os novos aviões a entrar no mercado produzirão zero emissões.
A taxação da pegada do carbono afetará o custo dos produtos, em especial aqueles que andam em Cadeias Logísticas Extensas, podendo, no entanto, contribuir para a relocalização de indústrias que, durante a Economia Linear, se deslocaram para destinos longínquos em busca de melhores custos dos fatores de produção (a competitividade financeira como único argumento de manobra!).
Isto não favorece o Transporte Marítimo de Longa Distância que já se debate, hoje, com Barreiras Não Tarifárias, protetoras do comércio internacional daqueles que as impõem, num Mundo (afinal!) cada vez Mais Multipolar depois de ter sido Global. A Covid-19 e a guerra na Ucrânia agravaram este xadrez geopolítico! Não o criaram!
A Economia Circular tem na Reciclagem o seu pilar mais forte e na Europa, a Taxa de Reciclagem é, em média, de 48% para a totalidade dos produtos suscetíveis de serem reintroduzidos no segmento inverso, e tem uma perspetiva de negócio de 242 biliões de dólares, em 2030.
Contudo, na Economia Digital, a reciclagem dos produtos IT, equipamentos de telecomunicações e fotovoltaicos assim como pequenos consumíveis diversos de base digital, tem taxas de sucesso que não excedem os 14,5%, percentagem muito modesta quando, na Europa, para esta gama de produtos, a reciclagem não é apenas um problema de eficiência global do Novo Modelo Industrial Europeu, mas é, também, um problema de segurança geoestratégica da própria Europa.
A nível europeu, o volume de lixo eletrónico (e-waste) anual aproxima-se do peso equivalente a cerca de 1500 Torres Eiffel (4500, a nível mundial) pelo que a exigência de uma maior reciclagem que os meros 14,5% atuais, afetará (reduzindo, porque a mina está no lugar de consumo, são as Pessoas!) os volumes de carga no Transporte Marítimo de Longa Distância, dadas as atuais geografias da produção e do consumo da maior parte destes produtos. Beneficiará, contudo, o Transporte Marítimo de Curta Distância.
A segurança estratégica da Europa em relação aos produtos digitais ou com componentes de tecnologia digital, produtos que dependem das chamadas Terras Raras, torna a sua reciclagem vital para a sobrevivência geoestratégica da Europa e nos mesmos termos em que se colocava (ainda se coloca) para o petróleo, o gás e o carvão, na Economia Linear do Velho Paradigma de Vida, em que não se podia (e ainda não se pode!) prescindir destas matérias primas sem o risco de colapso do Velho Modelo Industrial, e agora, do mesmo modo, não se pode prescindir das Terras Raras sem o risco de colapso do Novo Modelo Industrial.
“Terras Raras” é a designação dada para um conjunto de 17 elementos químicos raros, que têm usos diversos e imprescindíveis em todos os setores de atividade onde as tecnologias digitais estão presentes, ao ponto da National Geographic em artigo recente, afirmar categoricamente:
Sem estes 17 elementos, não haverá transição energética, sociedade digital ou tecnologia de ponta. (NG Março 2022).
Ou, ainda, de Guillaume Pitron, em The Rare Metals War:
“But today, in the twenty-first century, we are unaware that a more sustainable world is largely dependent on rock-borne substances called rare metals”
As grandes reservas de Terras Raras ( 124 milhões de toneladas estimadas, a nível mundial) encontram-se na China (44MT), no Vietname (22MT) , no Brasil (22MT), na Rússia (12MT), na Índia (6MT) na Austrália (3,3MT) e nos Estados Unidos (1,4MT), ou seja, em elevada concentração nos 4 membros BRIC, a que se junta o Vietname, realçando-se, todavia, tanto a sua pequena expressão nos Estados Unidos como a ausência da Europa nesta lista, porque, no caso dos Europeus, não sabem o que têm, mas, se alguma coisa têm, recusam-se a permitir a mera prospeção do seu solo, por razões ecológicas, seja qual for o significado da palavra ecológico.
Resta, assim, aos Europeus serem eles próprios a mina para poderem continuar a usar a tecnologia sem riscos geoestratégicos e geopolíticos, procedendo à reciclagem do seu e-waste de modo a recuperar o que for possível de materiais raros. É uma operação cara e não totalmente isenta de poluição. O Japão está a fazê-lo com muito sucesso!
Deste modo, no Novo Paradigma de Vida centrado na Economia Circular, as Terras Raras ocuparão o lugar estratégico que os Hidrocarbonetos Naturais ocuparam no Velho Paradigma de Vida, centrado na Economia Linear e, provavelmente os BRIC tomarão o lugar da OPEP na definição das regras do jogo da Nova Reorganização das Cadeias de Produção.
Este é o grande desafio futuro do Transporte Marítimo, repete-se, que vai perder a rede robusta de transporte dos hidrocarbonetos naturais (transição energética) e, ao mesmo tempo, vai ter de moldar a rede sublime dos contentores ao Novo Modelo Industrial.
Contudo, esta Nova Reorganização das Cadeias de Produção irá proporcionar novas oportunidades ao Transporte Marítimo quer pelo transporte de materiais para reciclar quer pelo transporte dos novos materiais nascidos da reciclagem, abrindo-lhe novas perspetivas, especialmente, na curta distância.
Neste contexto, a reflexão dentro do Transporte Marítimo sobre o seu futuro é um fortíssimo desafio atual, visto que terá de se fazer em áreas muito sensíveis, a saber:
1. A Transição Energética nos Navios
2. A Transformação Digital nos Processos
3. Na Economia Circular:
· A lógica das Alianças atuais
· As Redes de Serviço
· A Dimensão dos Navios
· As Plataformas Marketplace
Para terminar e, ainda, sobre o clima, vale a pena citar António Guterres:
the UN Secretary-General insisted that unless governments everywhere reassess their energy policies, the world will be uninhabitable (UN Report).
O ITER-International Thermonuclear Experimental Reactor, a fusão nuclear (não confundir com a fissão da Economia Linear), dará uma grande ajuda (determinante?) para que a catástrofe não aconteça. Mas só lá para 2050! Até lá, temos que ser Nós, Cidadãos da Terra, a cuidar do Planeta e da sua Atmosfera para cuidarmos de Nós Próprios!
Foi nesta perspetiva que decorreu o 1.º Get Together da AGEPOR de Leixões subordinado ao tema sobre os atuais desafios do Transporte Marítimo que, basicamente, serão ditados pela migração do Modelo Industrial da Economia Linear em que vivemos para o Modelo Industrial da Economia Circular em que vamos viver, um movimento que a Europa quer liderar, impulsionado (forçado) pelo aumento da temperatura global para níveis que colocam em causa a Vida na Terra.
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